Hoje, praticamente toda a gente tem acesso a um computador e à internet — com todas as suas implicações. As ferramentas técnicas deixaram de ser barreiras. Qualquer pessoa pode paginar um fanzine com qualidade profissional ou muito próximo disso, imprimi-lo em casa ou num serviço online, encomendá-lo sob demanda com ou sem ISBN, e vendê-lo globalmente. A impressão digital corrige por si só muitas falhas técnicas; a qualidade é garantida mesmo quando esse não é o objectivo.
Neste contexto, o que distingue um fanzine? Já não é a estética pobre, nem a falta de meios. É a intenção.
Nada impede de ainda se fazer um fanzine com uma máquina de escrever, uma tesoura, cola e uma velha fotocopiadora — mas hoje isso é uma escolha estética, não um reflexo da condição do autor, que poderia, quase certamente, fazer tudo digitalmente. Escolher o caminho manual é, um gesto simbólico, com alguma revolta, mas não demasiada.
Mais do que o suporte ou a técnica, o que define o fanzine contemporâneo é a sua recusa em separar forma e conteúdo. A intenção sobrepõe-se ao formato. O formato sobrepõe-se à técnica. A técnica é sobreposta pela intenção. O fanzine continua a ser o lugar do político, do experimental, do comunitário, da ausência de censura (incluindo e principalmente a auto-censura), da estética individual, da voz pessoal e sem filtro. É uma publicação que nasce fora do sistema editorial instituído — ou, pelo menos, manifestando-lhe resistência. É necessariamente um exercício de autonomia total.
O fanzine caracteriza-se muitas vezes pela tiragem inicial reduzida. Mas essa baixa escala não tem de limitar o seu impacto. Com os meios actuais, é possível editar 10 exemplares hoje e outros 10 daqui a um mês. A impressão a pedido, permite que até a Amazon publique fanzines — um de cada vez, apenas quando encomendados, incluindo ISBN. A solidão do criador já não define o seu alcance.
Um exemplo histórico: “Leaves of Grass” de Walt Whitman, é por muitos considerado o primeiro fanzine. Teve uma primeira tiragem de apenas 795 exemplares em 1855, dos quais 200 numa edição “de luxo”, como se faz ainda hoje. As vendas foram escassas; a maioria dos exemplares foi oferecida — outra prática ainda viva no universo dos fanzines. Em vida do autor, o livro terá chegado aos 20.000 exemplares vendidos, número que se multiplicaria por dezenas após a morte do autor.
Tal como Whitman, o autor de um fanzine quer exprimir algo. Não quer usar os media instituídos, ou não lhes acede. O fanzine não é uma limitação: é uma decisão. Uma afirmação de independência, de voz própria com urgência.
O fanzine é a mensagem.
O que é, em resumo, um fanzine, hoje:
- Uma publicação de autor, feita com total liberdade.
- Uma escolha estética e temática, não uma limitação técnica.
- Uma tiragem inicialmente reduzida (mas não necessariamente efémera).
- Uma edição fora do sistema editorial instituído.
- Um veículo de expressão pessoal, directa e sem filtros.
- Um espaço para o experimental, o marginal, o incomum, o comunitário…
- Uma recusa consciente da lógica comercial ou mediática.
- Um gesto de autonomia e urgência criativa.
- Possivelmente gratuito, trocado ou vendido a preço simbólico.
- Feito com qualquer meio — desde o digital ao artesanal — por opção.
Onde nos podemos deparar com (mas não só):
- A apropriação de tudo o que existe.
- A fragmentação, o oposto de linearidade ou acabamento.
- O excesso barroco ou o minimalismo e muito mais entre ambos.
- A materialidade, o fanzine é concreto e mostra como é feito.
- O discurso horizontal, de igual para igual.
- Os gestos íntimos, a afinidade e a paixão.
- A liberdade visual.